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A Destituição das Figuras de Autoridade e a Orientação Bíblica no Antigo e Novo Testamento: Uma Análise Teológica e Cultural – Rev. Ricardo Rios Melo



A Destituição das Figuras de Autoridade e a Orientação Bíblica no Antigo e Novo Testamento: Uma Análise Teológica e Cultural – Rev. Ricardo Rios Melo 


A questão da autoridade é central tanto na teologia bíblica quanto nas dinâmicas sociais e culturais contemporâneas. A Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, orienta sobre a importância da autoridade, seja no contexto familiar, civil ou eclesiástico. Ao longo da história da Igreja e da sociedade, figuras de autoridade, como pais, líderes religiosos e governamentais, têm sido fonte de respeito e disciplina, mas também de conflitos e críticas, especialmente no contexto da pós-modernidade, onde a destituição da autoridade tem sido mais evidenciada. O pensamento de teólogos como João Calvino, Martinho Lutero e a Confissão de Fé de Westminster oferece uma base sólida para refletirmos sobre essa questão, enquanto fenômenos socioculturais, como a neurose histérica, o feminismo, a cultura “woke” e o declínio da função masculina, ampliam o debate.


A Perspectiva Bíblica sobre Autoridade


A Bíblia, em sua totalidade, reconhece a autoridade como uma estrutura divina instituída para o bem da ordem social e espiritual. No Antigo Testamento, especialmente no livro de Provérbios, há uma forte ênfase na importância de honrar os pais e as autoridades (Provérbios 1:8; 6:20), o que é reafirmado no Novo Testamento, onde o apóstolo Paulo, em Efésios 6:1-3, orienta os filhos a obedecerem aos pais "no Senhor", como um mandamento que traz promessa de vida longa. A autoridade, portanto, não é apenas uma questão humana, mas um reflexo da ordem divina.


No entanto, o Novo Testamento também aborda a relação com as autoridades terrenas, como o governo. Paulo, em Romanos 13:1-7, destaca a importância de submeter-se às autoridades, pois elas são instituídas por Deus para manter a paz e a justiça. A destituição ou a revolta contra essas figuras de autoridade, portanto, é vista como uma rejeição da ordem divina. Contudo, há exceções, como no caso de Atos 5:29, quando Pedro e os apóstolos se recusam a obedecer às autoridades que proíbem a pregação do Evangelho, demonstrando que a obediência às autoridades humanas deve ser subordinada à autoridade de Deus.


A Visão Reformada sobre Autoridade


A Reforma Protestante, com teólogos como João Calvino e Martinho Lutero, reafirmou a soberania de Deus como a fonte última de toda autoridade. Calvino, em sua obra Institutas da Religião Cristã, argumenta que a autoridade terrena, embora legítima, é sempre limitada e subordinada à autoridade de Deus. O próprio Estado, segundo Calvino, deve ser visto como um ministro de Deus, cuja principal função é preservar a justiça e a ordem social.


Lutero, por sua vez, destacou a noção de duas esferas de autoridade: a autoridade civil e a autoridade eclesiástica. Ambos devem operar dentro de suas funções designadas por Deus, mas, quando em conflito, a autoridade de Deus através da Escritura deve prevalecer (Lutero, A Liberdade Cristã). Assim, a destituição das figuras de autoridade dentro da sociedade moderna é vista como um reflexo do abandono da reverência a Deus, que é a origem da autoridade legítima.


A Confissão de Fé de Westminster e o Catecismo Maior


A Confissão de Fé de Westminster (1646) e o Catecismo Maior de Westminster fornecem uma síntese das crenças reformadas sobre a autoridade. A Confissão, no Capítulo 23, declara que "a autoridade do magistrado civil, sendo uma instituição divina, deve ser honrada e obedecida". No entanto, ela também reconhece que a autoridade do Estado e das outras figuras de autoridade deve ser exercida dentro dos limites estabelecidos por Deus, especialmente no que se refere à proteção da fé cristã e à promoção do bem comum. Esse ensino é vital quando se observa o atual contexto de contestação das figuras de autoridade em várias esferas sociais.


A Destituição da Autoridade e a Cultura Pós-Moderna


A pós-modernidade, com seu foco na subjetividade e na desconstrução das narrativas tradicionais, tem contribuído significativamente para a destituição das figuras de autoridade, especialmente a figura masculina e paterna. O feminismo, em sua vertente contemporânea, tem desafiado muitas das estruturas patriarcais tradicionais, não apenas no âmbito familiar, mas também na política e na religião. Nesse contexto, observa-se uma tendência crescente de questionamento da autoridade estabelecida, o que se reflete em uma rejeição das normas tradicionais de gênero e autoridade.


A chamada "cultura woke", com seu ativismo progressista, também se opõe frequentemente às figuras de autoridade estabelecidas, promovendo uma revisão das normas sociais, políticas e religiosas. O feminismo e a cultura woke, com suas críticas às estruturas de poder, acabam, por vezes, enfraquecendo a compreensão tradicional de autoridade, incluindo a autoridade paterna. A neurose histérica, segundo a psicanálise, pode ser vista como uma manifestação do distúrbio emocional causado pela ausência ou falha na autoridade paterna, que, em muitos casos, gera confusão e fragilidade no desenvolvimento psíquico do indivíduo.


A Teoria Lacaniana: “Em Nome do Pai”


Jacques Lacan, em sua teoria psicanalítica, introduz a ideia do "Nome-do-Pai" como um conceito fundamental para a constituição da identidade e da ordem simbólica. O "Pai" simbólico é a figura que representa a lei, a estrutura e a autoridade no processo de formação do sujeito. A ausência do "Nome-do-Pai" resulta em uma falha na constituição do sujeito, gerando crises de identidade e de sentido, o que pode ser observado na crescente onda de questionamentos e rejeições das autoridades paternas, sociais e religiosas na sociedade contemporânea.


Lacan argumenta que a falta de uma figura de autoridade sólida pode levar à desorientação psíquica e ao caos simbólico, o que se reflete nas tensões culturais e sociais atuais. A crise de autoridade, especialmente no que diz respeito à figura paterna, pode ser vista em figuras históricas como Friedrich Nietzsche, cujo ateísmo radical pode ser interpretado como uma reação à ausência ou rejeição da autoridade paterna, refletindo a dificuldade de se submeter a qualquer forma de autoridade transcendente.


A Síndrome da Ausência do Pai e o Ateísmo


O ateísmo, especialmente nas figuras de intelectuais como Nietzsche, Karl Marx e Sigmund Freud, pode ser analisado sob a ótica da ausência do pai. Nietzsche, ao declarar que "Deus está morto", reflete a perda da autoridade paterna e divina, o que conduz a um vazio existencial e ao questionamento de qualquer forma de autoridade superior. Esse vazio é muitas vezes preenchido por ideologias que negam ou substituem a autoridade transcendente por uma construção humana, muitas vezes autocrática e ideológica.


Marx e Freud, por sua vez, também podem ser vistos como figuras que, em sua crítica à religião e à moralidade tradicional, refletem um profundo distúrbio causado pela ausência ou distorção da figura paterna, o que acaba levando a uma rejeição das estruturas de autoridade estabelecidas.


Conclusão


A destituição das figuras de autoridade, tanto no contexto bíblico quanto na sociedade moderna, está diretamente ligada à crise de valores e à perda do respeito pela ordem divina. A teologia reformada, com suas ênfases na soberania de Deus e na limitação da autoridade humana, oferece uma resposta robusta à confusão contemporânea sobre autoridade. A neurose histérica, o feminismo, a cultura woke e o declínio da função masculina são expressões culturais e psicológicas de uma sociedade que, ao rejeitar as figuras de autoridade, experimenta uma crise de identidade e de ordem. A teoria lacaniana, ao destacar a importância do "Nome-do-Pai", oferece uma chave para entender o vazio simbólico que surge com a ausência da autoridade paterna, refletido também nas manifestações ateístas e na crise religiosa do mundo contemporâneo.



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Referências


BEALE, G. K. The Temple and the Church's Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place of God. IVP Academic, 2004.


CARSON, D. A. The Gagging of God: Christianity Confronts Pluralism. Zondervan, 2002.


CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. 1646.


EDWARDS, Jonathan. The Religious Affections. 1746.


KOSTENBERG, Andreas. The God Who Gave Us the Law. Baker Books, 2017.


LACAN, Jacques. Écrits: A Selection. W.W. Norton & Company, 2002.


LUTERO, Martinho. A Liberdade Cristã. 1520.


TOLKIEN, J. R. R. *The Letters


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