Antes que o galo cante
O
que é o homem? Essa pergunta permeia os livros de filosofia, história, antropologia,
psicologia, teologia, biologia, sociologia etc. Que ser tão magnífico e ao
mesmo tempo tão complexo e frágil; capaz das maiores proezas e das maiores barbáries.
O salmista, no salmo 8, faz uma pergunta magnífica quando compara a criação de
Deus com a criação do homem: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as
estrelas que estabeleceste, que é o homem, que
dele te lembres e o filho do homem,
que o visites?” (Sl 8.3, 4).
Pascal, acertadamente, fala que “a simples comparação entre nós e o infinito
nos abate” (PASCAL,
Bleise. Pascal – Vida e Obra - Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999, p. 47). Somos abatidos pelo simples fato de sermos
humanos; criaturas limitadas contemplando o ilimitado universo e nos debruçando
no inesgotável conhecimento. O finito olhando atônito para o infinito.
Como
se a finitude não bastasse, o homem, ao morder o fruto proibido, foi fatalmente
mordido pelo pecado e expulso da presença de Deus (Gn 3.23,24). O homem criado,
existente, finito em conhecimento, contemplador do eterno e agora, por conta de
sua transgressão, expulso da presença de Deus, passa a conhecer mais do mal do
que do bem. Antes da queda, ele não tinha nenhuma visão do mal e vivia em
perfeição. Esse homem, além de finito, torna-se um homem pecador. A luz de
outrora agora está longe dele. É necessário rendição ao Sol da Justiça: Cristo.
É necessário redenção!
O
homem caído e sem esperança, sem Deus no mundo, foi aproximado de Deus novamente
em Cristo. Nós, que estávamos afastados da presença de Deus, por conta de
nossos pecados, fomos reconciliados com Deus por meio de seu Filho: “naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel e
estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo. Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados
pelo sangue de Cristo” Ef 2:12, 13.
O
que muitos cristãos desconhecem, ou se esquecem, é que mesmo depois de sermos
resgatados por Cristo, aproximados por Deus pelo Seu sangue, ainda somos
mordidos pelo pecado. Não nos tornamos supercrentes. Não somos infalíveis! Somos
ainda pequenas criaturas e marcados pelo pecado.
Essa
marca do pecado pode ser observada em uma das mais belas biografias relatadas
pela Bíblia: a história de Pedro. Ele é chamado por Jesus, em Mt 4. 18. No Evangelho
de Lucas 5.8, Pedro demonstra compreensão espiritual diante do milagre de
Cristo: “Vendo
isto, Simão Pedro prostrou-se aos pés de Jesus, dizendo: Senhor, retira-te de
mim, porque sou pecador”. Que gloriosa
afirmação! Que iluminação desse homem!
No
evangelho de Mateus 14.8, Pedro mostra sua fé : “Respondendo-lhe Pedro, disse: Se és tu, Senhor,
manda-me ir ter contigo, por sobre as águas”. Que declaração de fé! Mas, em pouco tempo,
ele fraquejou: “E ele disse: Vem! E Pedro, descendo do barco, andou por sobre as águas
e foi ter com Jesus. Reparando, porém, na
força do vento, teve medo; e, começando a submergir, gritou: Salva-me, Senhor! E, prontamente, Jesus, estendendo a mão, tomou-o e
lhe disse: Homem de pequena fé, por que duvidaste? Subindo ambos para o barco, cessou o vento (Mt 14. 29-32).
Que contradição!
Um homem tão forte em sua fé fraqueja rapidamente.
Em
Mateus 16.16: “Respondendo
Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, Pedro declara saber
o que outros não sabiam: Jesus é o Cristo; O Messias prometido; remissão e redenção do seu povo. Depois dessa afirmação maravilhosa, em pouco
tempo, ele cai: “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos,
dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro
dia. E Pedro, chamando-o
à parte, começou a reprová-lo, dizendo: Tem compaixão de ti, Senhor; isso de
modo algum te acontecerá. Mas Jesus,
voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço,
porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens” (Mt 16.21-23).
É
curioso notar que em Mateus 16. 17-20: “Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão
Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está
nos céus. Também eu te digo
que tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na
terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido
desligado nos céus. Então, advertiu os
discípulos de que a ninguém dissessem ser ele o Cristo.” Jesus disse que
sobre esta pedra Ele iria edificar a
igreja. Infelizmente, esse versículo tem sido interpretado equivocadamente como
fundamentação para uma autoridade dada a Pedro além do que Cristo deu. As interpretações,
que não são o objetivo nesse arrazoado, seguem tradicionalmente dois caminhos:
a Igreja Romana entende que Cristo fala de Pedro e de Sua substituição – a ideia
de que Pedro é substituto de Cristo e o primeiro papa; e, a outra linha, que
segue a ideia muito comum da Reforma Protestante, a afirmação de que Cristo se
referiu à declaração de Pedro: “Respondendo Simão
Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. O jogo de palavras:
Pedro (pedrinha) e pedra também é curioso dentro da exegese.
Contudo,
polêmicas à parte, fica bem claro que Cristo não estava falando que Pedro seria
a pedra de sustentação de sua igreja. Ainda que a igreja esteja fundamentada na
escola apostólica, Cristo, no mesmo capítulo, usa a expressão parecida, pedra, para dizer que Pedro se tornara pedra
de tropeço: “Tu
és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das
dos homens” (Mt 16.23). A igreja seria muito frágil
se fosse sustentada sobre um homem. Cristo
é a pedra angular e único Salvador. O próprio Pedro declara isso em Atos 4.
11-12: “Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou
a pedra angular.
E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe
nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.
11-12).
É
Pedro que permite a melhor compreensão da dualidade do homem; da fraqueza que
nos atravessou após o pecado. Pedro é homem como nós, capaz do mais nobre ato
de bravura como cortar uma orelha do soldado que veio prender Jesus (Lc 22.49).
Ele é capaz de dizer que irá seguir Jesus por onde Ele for: “Então, Jesus lhes
disse: Esta noite, todos vós vos escandalizareis comigo; porque está escrito:
Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão dispersas. Mas, depois da minha ressurreição, irei adiante de
vós para a Galiléia. Disse-lhe Pedro:
Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o serás para mim. Replicou-lhe Jesus: Em verdade te digo que, nesta
mesma noite, antes que o galo cante, tu me negarás três vezes. Disse-lhe Pedro: Ainda que me seja necessário morrer
contigo, de nenhum modo te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo (Mt 26. 31 -35).
Mas,
cuidado Pedro! Existe um galo em sua vida! “Antes que o galo cante”. Pedro agora recebe um cronômetro. O tempo
estava contra ele. Antes que o galo cantasse, ele iria negar a Cristo três vezes.
Note que todos os discípulos disseram o mesmo que Pedro: iriam com Jesus até a
morte. Mas era Pedro que seria provado: “Ora, estava Pedro assentado fora no pátio; e,
aproximando-se uma criada, lhe disse: Também tu estavas com Jesus, o galileu. Ele, porém, o negou diante de todos, dizendo: Não sei
o que dizes. E, saindo para o alpendre, foi ele visto por
outra criada, a qual disse aos que ali estavam: Este também estava com Jesus, o
Nazareno. E ele negou outra
vez, com juramento: Não conheço tal homem.
Logo depois, aproximando-se os que ali estavam,
disseram a Pedro: Verdadeiramente, és também um deles, porque o teu modo de
falar o denuncia. Então, começou ele a praguejar e a jurar: Não
conheço esse homem! E imediatamente cantou o galo. Então, Pedro
se lembrou da palavra que Jesus lhe dissera: Antes que o galo cante, tu me
negarás três vezes. E, saindo dali, chorou amargamente (Mt 26. 69-75).
Pedro
chorou copiosamente. Ele negou o Mestre. Andou com Ele, aprendeu, viu milagres,
presenciou a glória de Cristo, fez o melhor de todos os seminários: andou com
Cristo. Mas, antes do galo cantar a terceira vez, ele negou tudo isso.
Depois
desse fato vexatório, Pedro mostra sua coragem em Atos 5.40-42: “Chamando os
apóstolos, açoitaram-nos e, ordenando-lhes que não falassem em o nome de Jesus,
os soltaram. E eles se retiraram
do Sinédrio regozijando-se por terem sido considerados dignos de sofrer
afrontas por esse Nome. E todos os dias, no
templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo”.
Contudo,
todas as manhãs, o galo canta. O forte Pedro, a pequena pedrinha, não resistiu
e ficou com medo novamente no grande encontro com Paulo em Gálatas: “Quando,
porém, Cefas veio a Antioquia, resisti -lhe face a face, porque se tornara
repreensível.
Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os
gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar -se,
temendo os da circuncisão.
E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio
Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles
(Gl 2.11-13).
O detalhe é que Pedro tinha aceitado e defendido os gentios no
capítulo 15.7-11 de Atos. Todavia, o
galo cantou.
Queridos, ser crente não
significa ser impecável. A impecabilidade da alma é uma heresia. A grande demonstração
da divindade da Bíblia repousa no mais belo fato e assustadora constatação de
que o homem é falho e a exaltação pertence apenas a Deus. O único Ser Santo nas
Escrituras é o SENHOR. Os crentes
precisam da santificação. Todavia, esse processo é inacabado nessa vida e é garantido
apenas na volta do Senhor. Enquanto o
Senhor não vem, o galo sempre canta!
Entretanto, quando ele cantar bem alto em seus ouvidos, faça como
Pedro: chore amargamente, mas levante-se! Cristo sempre está de mãos estendidas
para nos levantar. Seu olhar não será de reprovação, mas de misericórdia.
Mesmo depois de Pedro ter pecado tão drasticamente contra o
Senhor, Jesus diz ao seu pequeno servo: “Depois de terem comido, perguntou Jesus a
Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros? Ele
respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Ele lhe disse: Apascenta os meus
cordeiros. Tornou a
perguntar-lhe pela segunda vez: Simão, filho de João, tu me amas? Ele lhe
respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Pastoreia as
minhas ovelhas.
Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me
amas? Pedro entristeceu-se por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas?
E respondeu-lhe: Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo.
Jesus lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21. 15-17).
Certamente Pedro se lembrou da negação, do seu pecado e de sua
covardia. Entristeceu-se, pois Cristo perguntou a ele a mesma quantidade de
vezes que ele negou. Entretanto, Cristo entrega a Pedro um rebanho para ser
pastoreado. Que glória! Que doce é a misericórdia do Senhor! Ele usa pessoas
falhas, pequenas e cheias de defeitos para pastorear tantas outras com as
mesmas características. Não é que Ele queira que cometamos pecado constantemente,
não! Mas, ao pecarmos, devemos nos render aos seus pés. Toda autoconfiança deve
ser destronada.
A primeira frase de Pedro continua sendo forte: “Senhor, retira-te de
mim, porque sou pecador”. Mas a resposta de
Jesus é essa: “(...) E eis que
estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.20).
O galo certamente cantará. Mas, Cristo nos levantará! Ele não
despreza um coração contrito. E ainda que muitas vezes o abandonemos na
temporalidade de nossa vida e na fragilidade humana e pecaminosa, ele jamais
nos descartará! Se um dia você veio ou vier a Cristo, como Pedro fez, Ele
jamais te deixará: “Todo aquele que o
Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37).
Deus nos abençoe!
Rev. Ricardo Rios Melo
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