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“O varal da vizinha”

“O varal da vizinha”




 Começo esse arrazoado com uma ilustração muita conhecida e propagada em vários sites da internet. Segue a história: “Na primeira manhã de um casal em sua nova casa, durante o café, a mulher reparou através da janela uma vizinha que pendurava seus lençóis em um varal. Ela, então, comentou com o marido: - Mas que lençóis sujos ela está pendurando no varal! Provavelmente ela está precisando de um sabão novo.  Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas! O marido observou calado. Alguns dias depois, novamente durante o café da manhã, a vizinha pendurava seus lençóis no varal. A mulher então comenta com o marido: - Nossa vizinha continua pendurando os lençóis sujos! Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas! E assim, a cada dois ou três dias, a mulher repetia seu discurso, enquanto a vizinha pendurava suas roupas no varal. Passado um mês, a mulher surpreendeu-se ao ver os lençóis brancos, alvissimamente brancos, sendo estendidos. Empolgada foi, então, dizer ao marido: - Veja! Ela aprendeu a lavar as roupas! Será que a outra vizinha a ensinou? Porque, não fui eu quem a ensinei. O marido calmamente respondeu: - Não, é que hoje eu levantei mais cedo e lavei os vidros das nossas janelas!

Essa história retrata algo surpreendente nos seres humanos: a incapacidade de ver seus próprios defeitos. Muitas vezes, estamos tão obliterados no entendimento que não conseguimos enxergar as nossas falhas. Somos excelentes críticos de obras pontas, mas somos incapazes de construirmos algo.Em diversas situações, fazemos aquilo que é chamado pela psicologia de projeção: quando lançamos no outro algo que é nosso.  É comum vermos defeitos nos outros que na realidade são nossos. É difícil aceitarmos o fato de que somos falhos.

É na infância que esses construtos são estabelecidos. Quando alguém pergunta a uma criança algo que ela fez de errado, ela comumente fala: foi o Joãozinho que fez ou foi ele que me fez fazer. Na fase adulta se esperaria que isso passasse, porém, essa não é a realidade. Apenas nos sofisticamos mais nesse defeito ao vermos no outro algo que é nosso ou simples e infantilmente culpamos as pessoas e as circunstâncias por nossas imperfeições.

É importante notar que a cosmovisão atual tende a fortalecer essa desculpa, pois joga para o coletivo a responsabilidade: a culpa é do governo; sociedade; pai e mãe; escola etc. Conquanto esses personagens tenham sua parcela de culpa, a nossa janela continua suja.A reponsabilidade individual faz parte do mundo adulto: se espera que um adulto assuma seus erros e responda por eles. Na criança, essa atitude deve ser trabalhada com sabedoria para que ela cresça sabendo de suas responsabilidades.

A projeção dificilmente será aniquilada. No entanto, ao percebermos um erro no outro, deveríamos automaticamente nós perguntar: o que é do outro?  o que é meu? Será que temos essa compreensão? Bom, devemos desenvolvê-la se quisermos crescer como sujeitos maduros.

Os cristãos não estão livres de terem suas janelas sujas. Cristo combateu com grande veemência esse tipo de atitude em Mateus 7.1-5: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão”.

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, Jesus não proíbe o julgamento em si. Ele regula a forma com a qual devemos julgar. Caso Jesus tivesse negado a possibilidade de julgamento, não teríamos como entender o texto que diz que pelos frutos é que conhecemos a árvore. A questão é o critério do julgamento em Mateus 7.15- 20: “Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons. Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo. Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis.

A questão é o critério (Krima) do julgamento, a medida (metron). Os fariseus eram hipócritas que buscavam sua própria glória e louvor. Julgavam os outros com dureza e sem misericórdia e praticavam vários pecados que condenavam: “Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os templos?” Romanos 2. 22. ; não deixavam passar um mosquito, mas engoliam um camelo (Mateus 23.24).  Eles eram hipócritas (hupokrites): essa palavra era usada na época para descrever os artistas de teatro que interpretavam outras pessoas; descreve a ideia de atuar, os dissimulados, impostores.

Ao final do texto, Jesus diz que, após tirar o argueiro (Karpho = ramo seco, palha, palhiço, resíduos dos cereis) dos olhos, a pessoa poderia ver claramente o argueiro do irmão.

Todo julgamento cristão deve ter como lentes a Bíblia. Entretanto, o julgamento (krino) não deve ter o caráter condenatório finalístico, não! A posição é examinar os nossos atos pela régua das escrituras e ajudar o irmão faltoso com as Escrituras a voltar ao crivo bíblico.  A medida, a régua, não são os nossos olhos e nossa moralidade - não é a imposição da nossa  moralidade ao outro. A medida é a Escritura que afirma em João 8.7: “Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”.

Paulo afirma, em Romanos 2.16, que Deus julgará os segredos dos homens segundo o evangelho: “no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho. A medida deve ser as Escrituras, pois a medida da balança que usarmos será essa mesma que servirá de julgamento para nós. É pertinente notarmos que geralmente as pessoas mais duras e rígidas com as outras escondem uma janela imunda e embaçada. A rigidez com o outro é uma cruel projeção e péssimo indício.

Devemos ter em mente que a questão aqui não é cairmos em um antinomismo ou licenciosidade, não! A questão é que devemos olhar primeiramente para a nossa janela; limparmos a janela.

Uma das marcas da igreja verdadeira, segundo os reformados, é a disciplina eclesiástica: corrigir o irmão faltoso. Essa doutrina da disciplina repousa sobre a autoridade da igreja (Mateus 18.18) que julgará as faltas por intermédio das Escrituras. Não estaremos isentos ao erro humano, mas, o critério é a Escritura. É dentro desse crivo que Paulo realiza uma disciplina na igreja de Corinto: “Geralmente, se ouve que há entre vós imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu próprio pai. E, contudo, andais vós ensoberbecidos e não chegastes a lamentar, para que fosse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou? Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus” (1 Coríntios 5. 1-5).

 As Escrituras funcionam como o código a ser seguido para o julgamento. É uma avaliação o mais objetiva possível. Quando falo o mais objetiva possível, pretendo dizer que a subjetividade humana permanece. Daí a necessidade de uma boa hermenêutica.

Davi estava certíssimo quando preferiu cair no julgamento de Deus e não no julgamento humano – 2 Samuel 24.14: “Então, disse Davi a Gade: Estou em grande angústia; porém caiamos nas mãos do SENHOR, porque muitas são as suas misericórdias; mas, nas mãos dos homens, não caia eu.

Querido, antes de olhar a roupa suja no varal do vizinha(o), limpe sua janela! Retire sua fantasia e pare de interpretar: seja menos hipócrita! Acorde mais cedo e lave sua janela!  

Existe uma frase que li há muito tempo no arquivo histórico da Igreja Presbiteriana do Brasil, no jornal O Puritano, que diz assim: “não vá para igreja procurar um hipócrita, vá para casa e se olhe no espelho, você encontrará um!”

Seja mais cauteloso ao pegar uma pedra para atirar, pois pode vir uma pedreira para você.

Deus nos abençoe!Rev. Ricardo Rios Melo 

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