A normalização do milagre – uma breve perspectiva sobre o pansobrenaturalismo (3ª parte) Rev. Ricardo Rios Melo
A normalização do milagre – uma breve perspectiva sobre o
pansobrenaturalismo (3ª parte)
Rev. Ricardo Rios Melo
É inegável a ação do Espírito no Antigo
Testamento (AT) em todas as partes da vida do povo de Deus. Entretanto, assim
como no Novo Testamento, as pessoas só conseguem enxergar a obra do Espírito
ligada a sinais espetaculares; no AT muitas pessoas também só conseguem
enxergar a ação do Espírito nos Sinais e maravilhas. Na realidade, existem
pessoas que, no afã de dicotomizarem o AT e o NT, na contramão da visão sobrenaturalista, também fecham os
olhos para as ações sobrenaturais do Espírito, no período veterotestamentário.
Carson, em um excelente artigo sobre Sinais e Maravilhas no Novo Testamento,
nos ajuda a entender esses eventos do AT como eventos históricos-redentivos:
Muitos dos eventos que a Bíblia chama de “sinais
e maravilhas” são miraculosos, redentivo-históricos – de Deus. No Antigo
testamento, os eventos relacionados ao êxodo se destacam (Ex 7.3; conf. 3.20;
8.23; 10.1,2; 11.9, 10; 15.11; Nm 14.22; Dt 4.34; 6.22; 7.19; 26.8; 29.3; Js
3.5; 24.17). As gerações israelitas que se seguiram testemunham isto: “[Deus
foi] quem no meio de ti, ó Egito, operou sinais e prodígios, contra Faraó e
todos os seus servos” (Sl 135.9; conf. Ne 9.10; Sl 105.27; Jr 32.21). Estevão,
baseado nas Escrituras, referiu-se aos eventos do Êxodo dessa mesma forma:
“Este [Deus] os tirou, fazendo prodígios e sinais na terra do Egito, assim como
no Mar Vermelho e no deserto, durante quarenta anos” (At .7.36).[1]
Para Carson, é inegável a associação de sinais e maravilhas aos eventos
históricos-redentivos. É dentro dessa perspectiva que o Novo Testamento
interpreta o AT. Os eventos miraculosos, espetaculares do AT estão intimamente
ligados ao aspecto redentivo de Deus. O Trino Deus estava agindo no AT e age no
NT. Sem o entendimento do envolvimento da trindade na história redentiva, não
se pode compreender nenhuma ação do Espírito. O Espírito não age independentemente
do Pai. Ele não age à revelia do Filho. A economia da trindade é imprescindível
na salvação da humanidade caída.
Muitos discursos dos pansobrenaturalistas atacam,
por ingenuidade ou não, a inter-relação da Trindade. Parece que os atos do
Espírito Santo espelham um modalismo[2],
uma ação distinta e, às vezes, contrária ao Pai e ao Filho. Há um entendimento
de que o Espírito pode negar quaisquer coisas que ele falou no passado, pois
agora, segundo eles, chegou a sua vez.
Uma interpretação correta da obra da Trindade é
de fundamental importância para a vida da igreja. Não é sem motivo que Bavinck
declara:
Na doutrina da Trindade sentimos o batimento cardíaco
de toda revelação de Deus para a redenção da humanidade. Prefigurada no Antigo
Testamento, ela só veio à plena luz em Cristo. A religião não pode se
satisfazer com menos do que o próprio Deus. Em cristo, o próprio Deus vem a
nós, e, no Espírito Santo, ele se comunica a nós. A obra de recriação é
totalmente trinitária. De Deus, por meio de Deus e em Deus são todas as coisas.
(...) Sabemos que somos filhos do pai, redimidos pelo filho e temos comunhão
com ambos por meio do Espírito Santo. Toda bênção, tanto espiritual quanto
material, vem a nós a partir do Deus trino.[3]
Quando entendemos
a obra trinitariana de Deus e seus aspectos históricos-redentivos, podemos
perceber melhor a unidade e continuação no NT.
Uma percepção quebrada das Escrituras não compreende a perspectiva de
continuidade e descontinuidade revelacional. A ideia pactual faz com que a
visão tanto do AT e do NT como da trindade formem um todo unificado. De maneira
prática, quando se percebe os atos redentivos de Deus na história como tendo
início desde o que os teólogos chamam de proto-evangelho, percebe-se e
interpreta-se o NT como uma continuidade do que Deus começou a fazer desde o início.
A terminologia de Velho Testamento e Novo
Testamento pode gerar confusão na cabeça dos crentes modernos. Parece que um é
antiquado, ultrapassado, anulado, enquanto o outro é moderno, atual e
aplicativo. Contudo, é um erro fatal fazer isso, pois a unidade das Escrituras
é crucial para a vida da igreja. Uma afirmação importante é feita Geerhardus
Vos:
...deve-se notar que, quando a Bíblia fala de um
duplo berith, uma dupla diatheke, por “antiga” aliança se
entenda não período inteiro que vai da Queda do homem a Cristo, mas o período
desde Moisés até Cristo. Entretanto, o que precede o período mosaico na
descrição de Gênesis pode ser apropriadamente incorporado sob a “antiga
aliança”. No Pentateuco, ela tem a função do prefácio à narrativa das
instituições mosaicas e o prefácio pertence à capa do livro. De igual modo, a
“Nova Aliança”, no sentido periódico, soteriológico da palavra, vai além do
tempo de vida de Cristo na terra e da era apostólica; ela não somente nos
inclui, mas se estende e cobre o estado escatológico ou eterno.[4]
É de suma urgência também entender que a obra redentiva
de Deus tem sua centralidade em Cristo. A cristocentricidade da Bíblia é
inegável. Portanto, assim como é desonroso não enxergar a obra do Espírito no
AT, também é igualmente desonroso não perceber Cristo nas páginas do AT. Goldsworthy
trabalha dentro de uma visão unificada das Escrituras:
O quadro unificado envolve a perspectiva bíblica
que se move desde a criação até à nova criação, como extensões para a
eternidade em ambas as direções. Este não é o lugar para considerarmos a
questão complexa da relação do tempo com a eternidade, mas precisamos
reconhecer que a Bíblia apresenta um quando de relação de tempo. Isto significa
que o grande quadro de relação de tempo. Isto significa que o grande quadro é
essencialmente histórico. Mas não é apenas histórico. Acho desapontador o fato
de que descrições e introduções do Antigo Testamento contenham, tão
frequentemente, pouco mais do que um tipo de resumo histórico dos
acontecimentos narrados no texto. Poucos tratariam o Novo Testamento desta
maneira, por causa da importância óbvia de Jesus. Mas, no que diz respeito ao
Antigo Testamento, a noção de seu conteúdo teológico é, muitas vezes,
estranhamente ignorado. O fato é que toda a Bíblia apresenta a sua mensagem
como teologia dentro de uma estrutura de história.[5]
Talvez a forma dispensacionalista de enxergar as
Escrituras influencie de tal maneira o crente contemporâneo e, inclusive alguns
ditos reformados, que eles não conseguem enxergar uma unidade entre o AT e NT e
a ação da Trindade.
Os
dispensacionalistas têm uma visão fracionada das Escrituras. Existem variações
mais moderadas de dispensacionalismo, mas de maneira geral, a ideia básica
apregoada é de uma interpretação estritamente literal das Escrituras. Nesse sentido,
portanto, toda profecia a Israel deve ser compreendida de maneira literal e
cumprida para Israel. Uma divisão rigorosa entre o Israel do Antigo Testamento
e a Igreja no Novo, essa dicotomia entre Israel e a Igreja do NT perdurará
eternamente. Essa é uma visão de que o período da Igreja no NT não foi previsto
no AT; Israel estaria aguardando o tratamento de Deus com os gentios para
voltar a ter um papel principal.
Alguns
dispensacionalistas dividem o tratamento de Deus em sete dispensações: 1. A era
da inocência com a Adão e termina com sua queda, ou seja, perda da inocência; 2.
A era da consciência quando o homem tomou consciência do bem e do mal e acaba
com o dilúvio em Noé; 3. A era do governo humano que começa após o dilúvio e
termina em Babel na separação das línguas e povos; 4. Da promessa que
obviamente começa e Abraão e termina no exílio egípcio; 5. A era do Sinai ou da
lei que impera desde Moisés até a expulsão de Israel e Judá da terra de Canaã;
6. A era da graça que logicamente começa com a morte de Jesus Cristo e que
terminará no arrebatamento da igreja; 7. A era do Reino que começará com a
segunda vinda de Cristo e terá fim no grande julgamento, essa era também é
descrita como Dipespensação do Milênio.[6]
Uma
leitura mais acurada do Novo Testamento já descartaria sumariamente esse tipo fatiado
de leitura das Escrituras, com todo respeito. Entretanto, o apóstolo Paulo nos
ajuda a entender que o Evangelho nada mais é que a consumação dos atos
histórico-redentivos de Deus. A explicação de Paulo sobre o Evangelho, em Rm
3.21,22, mostra claramente isso: “mas agora
a justiça de Deus se manifestou, sem lei, atestada pela Lei e pelos profetas.
Isto é, a justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo para todos os que creem”.
“Logo, de acordo com Paulo, as Escrituras em
sua totalidade – a Lei e os profetas – já ensinavam, de modo resumido, o
evangelho que Paulo proclamava: a pessoa pode ser tornada justa diante de Deus
pela fé em seu Filho, Jesus Cristo”.[7]
Em uma interpretação empolgante do profeta Amós,
no capítulo 9, versículo 11, onde diz: “Naquele
dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi”, Palmer Robertson afirma que o
concílio de Jerusalém, em Atos 15, e a interpretação de Tiago é que esse
tabernáculo é restaurado em Cristo e na união entre Judeus e Gentios:
Assim, pode ser sugerido outro entendimento
possível para o cumprimento da profecia de Amós. Um cumprimento genuíno está
acontecendo na presente era, em harmonia com o argumento de Tiago. A escolha de
gentios para ser o povo de Deus em pé de igualdade com os judeus pode ser vista
como realização do plano redentor de Deus desde eras passadas. O papel singular
de Israel pode ser reconhecido no fato de ele ser o “servo” pelo qual o
evangelho é levado às nações. Israel continua a ter importância na inclusão,
feita por Deus, de judeus entre os remidos. Todavia, o presente cumprimento da
profecia de Amós pode, ao mesmo tempo, ser visto apenas como o “primeiro
estágio” da atividade realizadora de Deus. A restauração do trono davídico
assume a forma humildade de uma “cabana” ou “tenda”.[8]
Mais
diretamente falando sobre a ação do Espírito nessa unidade entre o Novo e o
Antigo, Robertson afirma:
Mas o primeiro capítulo da posse do Espírito
pelos gentios hoje garante a futura restauração de todas as coisas. Dotados de
corpos transformados pelo poder ressuscitador do mesmo Espírito Santo, os
crentes em Cristo participarão, no final, da restauração de todas as coisas, na
recriação do céu e da terra.[9]
Quando entendemos continuidade e descontinuidade
na Bíblia, fica mais clara a relação da própria obra da trindade. Por exemplo,
fica mais fácil entender que a obra do Espírito no AT está ligada aos atos
redentivos do Pai e do Filho. No Novo Testamento, a compreensão da obra do
Espírito obrigatoriamente passa pela ótica cristocêntrica. A honra ao Espírito
está ligada à sua obra de revelar o Filho. O Espírito põe seu holofote no
Filho! “Um enfoque sem esta consideração
consiste num esquecimento do Espírito por maior que seja o nosso desejo de
‘reabilitá-lo’ à igreja”. Há o perigo de enfatizarmos erradamente o Espírito em
detrimento do Filho”.[10]
Talvez algum incauto argumente que a obra do
Espírito é tão superior que se pode blasfemar contra o Pai e o Filho, mas não
se pode blasfemar contra o Espírito. Contudo, é uma tremenda heresia entender
assim. A não aceitação da blasfêmia contra o Espírito reside exclusivamente na
unidade da Trindade.
John Owen nos brinda com uma interpretação
fantástica sobre o assunto:
(...) nesse
sentido, e não de maneira absoluta, é que ele é enviado com autoridade pelo Pai
e pelo Filho. É uma máxima conhecida que desigualdade
quanto ao ofício não é desigualdade quanto à natureza. Essa sujeição (se
posso chamar assim) ou “desigualdade quanto ao ofício” em nada prejudica a
igualdade de natureza que ele tem com o Pai e com o Filho; não mais que a
missão do Filho pelo Pai e com o Filho; não mais que a missão do Filho pelo Pai
afeta a dele. Dessa missão de autoridade do Espírito dependem a compreensão de
muitos mistérios no evangelho e o ordenar nossos corações em comunhão com ele.
Por isso, o
pecado contra o Espírito Santo (não discuto o que isso significa agora) é
imperdoável e recebe a conotação de rebelião como nenhum outro pecado recebe –
isso porque ele não vem ou age em seu próprio nome apenas, mas no nome e na
autoridade do Pai e do Filho, de quem e por quem é enviado. Portanto, pecar
contra ele é pecar contra a autoridade de Deus, contra todo o amor da Trindade
e contra a máxima condescendência de cada pessoa à obra de nossa salvação. É
por causa da missão com autoridade do Espírito que o pecado contra ele é
peculiarmente imperdoável, pois é contra o amor do Pai, do Filho e do Espírito.
Seria com essa base, se fosse este o nosso assunto atual, que a verdadeira
natureza do pecado contra o Espírito Santo seria investigada. Certamente,
consiste no desprezo de alguma operação dele, enquanto age em nome e na
autoridade de toda a trindade em sua inefável condescendência à obra da graça.[11]
Perder a visão trinitária das Escrituras é
laborar em erro fatal. Trabalhar os atos miraculosos e sobrenaturais do Espírito
sem uma visão da continuidade do AT e NT é inevitavelmente desastroso. O Trino
Deus age na História e antes da História humana. Os atos redentivos históricos
são atos trinitários.
Continua...
[1]
D. A Carson in Religião de Poder; Michal Horton , editor, São Paulo: Cultura
Cristã, 1998, p. 76,77.
[2]
Doutrina herética que negava a trindade. Grosso modo, eles entendiam que o
mesmo Deus tinha três máscaras ou modos de se apresentar. Eles negavam a
pessoalidade da trindade. De modo prático, o entendimento era que Deus se apresentava
de maneiras diferentes, mas não existia de modo factual o Deus Pai, Deus o
Filho e Deus o Espirito, eram apenas modos de Deus se apresentar ao crente. Esse
tipo de equívoco foi desenvolvido pelo padre Sabélio no III sec. D.C. daí
também o nome de sabelianismo.
[3]
Herman Bavinck, Dogmática Reformada –
Deus e a Criação, Vl 2, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 341.
[4] Geerhardus
Vós, Teologia Bíblica, São Paulo:
Cultura Cristã, 2010, p. 41,42.
[5]
Graeme Goldsworthy, Pregando Toda a
Bíblia como a Escritura cristã: a aplicação da teologia bíblica: à pregação
expositiva, São José dos Campo, SP: Editora Fiel, 2013, p. 63,64.
[6]
Para uma leitura mais abrangente e preciosa desse tema recomendo o artigo do
Rev. João Alves encontrado na internet em diversos sites como da IPCO ou nesse
site: http://www.militarcristao.com.br/estudos.php?acao=texto&id=142
.
[7]
Andreas J. Köstenberger e Michael J.
Kruger, A Heresia da Ortodoxia: como o
fascínio da cultura conteporanea pela diversidade está transformando nossa
visão de cristianismo primitivo, São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 99.
[8]
O Palmer Robertson in Continuidade e Descontinuidade:
perspectivas sobre o relacionamento entre o Antigo e o Novo Testamentos,
John S. Feinberg, editor, São Paulo: Hagnos, 2013, p. 125.
[9]
O Palmer Robertson in Continuidade e Descontinuidade:
perspectivas sobre o relacionamento entre o Antigo e o Novo Testamentos,
John S. Feinberg, editor, São Paulo: Hagnos, 2013, p. 125.
[10]
Hermisten Maia Pereira da Costa, Eu Creio: no Pai, no Filho e no Espírito Santo, São José dos Campos, SP:
Editora Fiel, p. 438.
[11] John
Owen, Comunhão com o Deus trino, São Paulo:
Cultura Cristã, 2010, p. 285.
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