A normalização do milagre – uma breve perspectiva sobre o
pansobrenaturalismo (1ª parte)
Rev. Ricardo Rios Melo
Há algum tempo, venho pensando
sobre um tipo de pentecostalismo que não é tão incomum. Conversando com alguns
crentes, você se sente um totalmente ímpio. Explico: você conversa com eles e eles
tiveram várias experiências sobrenaturais na vida. Eles relatam Deus falando
com eles, profecias concretizadas, sentimentos oriundos de Deus. Quem estiver
perto deles sentir-se-á completamente frio na fé.
Eles dizem ser guiados por Deus
para qualquer tarefa por mais corriqueira que seja. Ouvem Deus falando ao
coração de maneira audível. Perceba, eles não ouvem a voz de Deus como qualquer
crente, eles OUVEM a voz de Deus falando hoje, especificamente com eles, e
conversam com Deus. As experiências são
fantásticas! Curas impossíveis, empregos impossíveis, dinheiro impossível, bens
extraordinários, curas diárias. Vire à direita! Dobre a esquerda! Siga em
frente! Qualquer que seja a atividade, esses extraordinários crentes ou crentes
extraordinários, ouvem a voz de Deus em alto e bom som e em tonalidade
diferente.
Em conversas comuns, eles se
colocam como hiper, super, mega espirituais! De maneira humilde, é claro! Você
se sente uma formiga esmagada por um gigante. Deus, para eles, só fala de
maneira extraordinária. Enquanto você é incrédulo por acreditar que Deus se
revelou nas Escrituras inspiradas pelo Espírito, esses magníficos crentes tem o
número direto do whatsapp de Deus. Quando você diz que apenas tentou cumprir de
maneira ínfima o que Deus revelou nas Escrituras, pois o pecado sempre se
interpõe como um obstáculo a ser vencido, esse grupo disfarça um deboche
inevitável.
Do outro lado da moeda, existem
alguns crentes que não conseguem enxergar o sobrenatural em nada. Não percebem os
atos invisíveis de Deus em suas vidas. Também não enxergam o milagre de Deus em
situações inusitadas. Quando todas as portas se abrem, eles estão de olhos
fechados para a condução clara de Deus. É uma espécie de racionalismo
travestido de uma pseudopiedade. Vivem como se Deus não os guiasse nos mínimos
detalhes. Eles são ateus crentes. Dizem-se
cristãos, mas vivem como se Deus não existisse.
Quem tem filho pequeno acaba
tendo que assistir desenhos e filmes infantis. É claro que nos divertimos com
isso também. Em uma dessas situações, eu assisti um diálogo do filme “Os Incríveis”.
O filho Flecha conversando com sua mãe sobre a necessidade que ele tinha de
usar seus dons especiais de herói, ao que ela diz: “filho, todos são especiais”.
Flecha responde com a gentileza veraz das crianças: “é um modo diferente de
dizer que todos sãos normais”, ou seja, não existem pessoas especiais.
Mutatis mutandis, dizer que os dons extraordinários do Espirito
acontecem com todos em todas as épocas é normalizar os dons e dizer que não
houve época especial. Contudo, o argumento poderia ser usado contra os
reformados aliancistas ao dizerem que Deus age extraordinariamente pelos meios
ordinários. Contudo, os reformados aliancistas fazem distinção do período
apostólico como inauguração de uma nova era. O pentecostes se reveste de um
momento especial, onde as profecias do AT e as promessas de Cristo a seus
discípulos, nos Evangelhos, são cumpridas.
Para os reformados aliancistas[1],
o Pentecostes foi um evento único na história redentiva. Os discípulos estão
aguardando esse momento da descida do Espírito para saírem de Jerusalém (At
1.8). Morthon H. Smitth, em sua Sytematic Theology (Volume Two), alerta-nos
para o fato da distinção entre texto doutrinário e didático e os textos
históricos.[2] Os
textos didáticos, normativos servem para todas as épocas. Contudo, o texto
histórico, como o próprio nome diz, serve para o momento em que aconteceram os
eventos respectivos.
O caráter aplicativo do AT no
Novo Testamento salta aos olhos em todo o NT. Em Marcus 13.11, o poder do
espírito está atrelado ao testemunho de Cristo ao mundo: “Quando,
pois, vos conduzirem para vos entregar, não vos preocupeis com o que haveis de
dizer; mas, o que vos for dado naquela hora, isso falai; porque não sois vós
que falais, mas sim o Espírito Santo” Mc 13.11.
Em Lucas 24.49, a mesma ideia é estabelecida do
aguardo do Espírito para que os discípulos se ausentassem de Jerusalém: “E eis que sobre vós envio a promessa de
meu Pai; ficai porém, na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder”
Lc 24.49.
Essa promessa deve ser a expectativa dos
discípulos para testemunhar com poder e intrepidez do Espírito Santo. Eles não
deveriam temer nada e nem ninguém, pois seriam revestidos da força e do poder
do Espírito para serem testemunhas de Deus por toda parte: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e
ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samária, e
até os confins da terra” At 1.8.
A promessa do paracleto
(consolador, advogado), em Jo 14, foi cumprida. As moradas do Espírito são os
crentes que recebem o Espírito e a certificação temporária disso é a
manifestação de sinais extraordinários. Essas manifestações fazem parte da
transição do AT para o NT.
No capítulo 2 de Atos, Pedro faz uma linda
exposição do AT para mostrar que a descida do Espírito Santo está atrelada às
promessas do AT e o cumprimento em Cristo. Cristo é doador do Espírito: “De sorte que, exaltado pela destra de
Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que
vós agora vedes e ouvis” AT 2.33.
O restante do capítulo é uma bela exposição de
Cristo como cumprimento das promessas do Pai. Davi não cumpriu. Mas, o Filho
Unigênito foi o único que vem de cima, da parte do Pai e que poderia cumprir e
cumpriu as promessas.
Agora Pedro enfatiza que Cristo está colocando
todos seus inimigos debaixo dos pés e que o sinal dessa promessa cumprida é o
envio do Espírito aos discípulos. Cristo está unido ao Pai e ao Espírito. Os discípulos
estão unidos ao Pai, ao Filho e ao Espírito por intermédio do Pentecostes (veja
Jo 14 e 15).
Era necessário que o Espírito fosse derramado na
Igreja para que Cristo continuasse sendo glorificado. Afinal de contas, a
Igreja é o corpo de Cristo. O que fora impossível aos mediadores puramente
humanos, o Vero Homem e Vero Deus cumpriu. Ele é maior que Davi e é o
cumprimento das promessas:
“Porque Davi não subiu aos céus, mas ele próprio
declara: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu
ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés. Saiba pois com certeza toda a casa de Israel que a esse mesmo Jesus, a
quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo. E, ouvindo eles isto,
compungiram-se em seu coração, e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos:
Que faremos, irmãos? Pedro então lhes
respondeu: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus
Cristo, para remissão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. Porque a promessa pertence a vós, a vossos
filhos, e a todos os que estão longe: a quantos o Senhor nosso Deus chamar. E
com muitas outras palavras dava testemunho, e os exortava, dizendo: salvai-vos
desta geração perversa. De sorte que foram batizados os que receberam a sua
palavra; e naquele dia agregaram-se quase três mil almas; e perseveravam na
doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor, e muitos prodígios
e sinais eram feitos pelos apóstolos” (At 2.34-40).
A promessa aos pais foi cumprida nos filhos.
Entender a forma literária de Atos é imprescindível
para compreensão de continuidade e descontinuidade dos dons no NT. Entender as
questões da aliança e de suas administrações também é pré-requisito para o entendimento
do que se tratará no decorrer desse breve estudo.
Por hora, fica a resposta do sábio Flecha, “se
todo mundo é especial, logo, todo mundo é comum” .
A normalização do milagre – uma breve perspectiva sobre o
pansobrenaturalismo (2ª parte)
Rev. Ricardo Rios Melo
Talvez o maior problema relacionado ao
entendimento da manifestação do poder e da ação do Espírito Santo no Novo
Testamento (NT) esteja relacionado à falta de compreensão do seu papel no
Antigo Testamento (AT).
No Antigo Testamento, o poder criador de Deus
está intimamente ligado ao Espírito Santo. Talvez não se tenha uma teologia bem
delineada à primeira vista. Contudo, um estudo mais atento e sistemático
apresenta a maravilhosa diversidade da ação do Espírito. Podemos perceber sua
obra desde Gn 1. 1,3. O pairar do Espírito
de Deus, ruach elohim, em gênesis “comunica a ideia de
‘abalar’ ou ‘flutuar’. É usado somente em dois outros lugares no Antigo Testamento.
Em Jeremias 23. 9, é usado nos ossos sendo movimentados. A despeito de
sugestões contrárias, abalar, seguramente, seria um modo inusitado de descrever
a atividade do vento”.[3]
A ação do ruach
de Deus também é encontrada de
dois modos bem distintos e poderosos: criativo e destrutivo. Ferguson nos ajuda
mais a entender:
O ruach de Yahweh é, por
assim dizer, o sopro de Deus, o poder irresistível pelo qual ele concretiza
seus propósitos, quer criativos, quer destrutivos. Por seu ruach ele cria o exército do céu (Sl 33.6), dá poder a juízes
salvadores como Otniel e Sansão (Jz 3.10; 14.6), arrebata profetas, eleva-os e
os coloca em outros lugares (como, por exemplo, Ez 3.12, 14; 11.1; cf. 1 Rs
18.12). Os que se tornam sujeitos da atividade do divino ruach agem de maneira sobrenatural, com energia e poderes sobrenaturais.
O ruach de Deus, portanto, expressa a
força irresistível. A energia todo-poderosa de Deus na ordem criada. Ele não
pode ser “dominado” pelos homens. Ao contrário, através de Seu ruach Ele é capaz de “domar” ou subjugar
todas as coisas para o cumprimento de Seu próprio propósito.[4]
Wayne Grudem resume e divide em sua sistemática a
obra do Espírito Santo dentro do âmbito da Pessoa do Espírito e de sua ação.
Quando se refere ao papel do Espírito Santo no Antigo Testamento, ele resume a
obra ao poder para o serviço e à proteção e capacidade para vencer os
inimigos de Israel.[5]
Citando Isaías 11. 2-3: “Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de
entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento
e de temor do Senhor. Deleitar-se-á no temor do Senhor...”, Grudem entende
que “por fim, o Antigo Testamento predisse o tempo em que o Espírito Santo
ungiria um Messias-Servo em grande plenitude e poder”.[6]
Falando sobre a obra criadora do Trino Deus na
criação e, especificamente, o trabalho do Espírito, Sproul diz que “parte da
obra do Espírito é ‘voejar’ sobre a criação, mantendo as coisas intactas. Quanto
a isso, vemos o Espírito Santo como o divino Preservador e Protetor. O
Espírito, pois, opera a fim de manter aquilo que o Pai trouxe à existência.”[7]
Para Hodge, o Espírito não só estava na Criação
de tudo, mas Ele é o doador de toda vida intelectual. “Através de seu Espírito,
Deus deu a Moisés sabedoria necessária para seus altos deveres e, quando lhe
foi ordenado que pusesse parte de sua carga sobre setenta anciãos, também lhe
foi dito: ‘Então, descerei e ali falarei contigo; tirarei do Espírito que está
sobre ti e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que não
a leves tu somente’ (Nm 11.17).”[8]
O príncipe dos puritanos, John Owen, diz que “as obras do Espírito Santo no Antigo
Testamento eram realizadas tanto extraordinariamente, sobrepujando todas as
habilidades realizadoras naturais dos homens, quanto ordinariamente, operando
para capacitá-los a fazerem aquelas obras com o mais alto grau das suas
habilidades naturais.”[9]
A vida do povo do Antigo Testamento dependia da
ação do Espírito para a execução de diversas tarefas, como por exemplo, em Êx
31.3-5, na construção do tabernáculo. Não é muito difícil cometer o erro de
entender a ação extraordinária do Espírito como a única ação possível. Mas, em uma
leitura mais atenta, é perceptível que o doador de todos os dons no AT é o
Espírito e, portanto, condutor da vida do povo em todos os âmbitos.
É claro que a ação extraordinária do Espírito é
encontrada nos sinais e, principalmente, nas profecias. “Os profetas do Antigo
Testamento testificavam que seus pronunciamentos e escritos provinham do fato
de o Espírito Santo ter vindo sobre eles. Ezequiel oferece o exemplo mais
claro: “Então, entrou em mim o Espírito quando falava comigo, e me pôs em pé, e
ouvi o que me falava” (2.2 cf. 8.3; 11.1, 24; veja tb. 2Pe 1.21).”[10]
Muitos autores entendem que a era do Espírito
começa de maneira mais evidente no Novo testamento: “O Antigo Testamento
aguarda uma nova era, a era do Espírito de Deus (Is 11.2; 44:3; Ez 36: 27s; Jl
2.28s).[11]
Lloyd-Jones, apesar de encontrar algumas distinções entre o Antigo e Novo
Testamento, salienta que os homens do VT eram guiados pelo Espírito Santo assim
com no NT. Ele utiliza o texto de 2Pe 1.21 e entende que, muito antes do
Pentecostes, o Espírito estava sobre os homens do AT capacitando-os para agirem
como agiram.[12]
Até o momento, podemos perceber que o Deus da
história é criador de tudo que há, mantém, preserva, dirige, conduz, capacita, destrói
o que precisa ser destruído, age, movimenta sua criação de modo geral, por
intermédio do Seu Espírito. Além de tudo
isso, é importante estabelecer em nossas mentes o fato inequívoco de que “A Escritura estabelece, além de qualquer dúvida,
que o Espírito Santo é o princípio subjetivo de toda salvação, da regeneração,
da fé, da conversão, do arrependimento, da santificação e assim por diante. Em
outras palavras, que não há comunhão com o Pai e o Filho a não ser e por meio
do Espírito Santo.”[13]
Continua ...
[1]
Tendo em vista que hoje muitos se autodenominam reformados e que o espaço desse
texto não se destina a explicar as diferenças, optamos por usar essa forma, por
compreender que um entendimento do todo revelacional só é possível de maneira
satisfatória dentro do entendimento da aliança e de sua progressividade
revelacional.
[2] Morton H. Smith, Systematic
Theology, Greenville, South Carolina, EUA: Grenville Seminary Press, 1994, 554-555.
[5]
Vd. Wayne Grudem, Teologia Sistemática, São
Paulo: Vida Nova, 1999, p. 532, 533.
[6]
Vd. Wayne Grudem, Teologia Sistemática, São
Paulo: Vida Nova, 1999, p. 532.
[7] RC
Sproul, O Mistério do Espírito Santo, São Paulo:
Cultura Cristã, 1997, p. 85.
[8]
Charles Hodge, Teologia Sistemática,
São Paulo: Hagnos, 2001, p. 395.
[9]
John Owen, O Espírito Santo, Recife:
Os puritanos, 2012, p. 21.
[10]
Millard J. Erickson, Introdução à Teologia
Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 352.
[11]
Bruce Milne, Estudando as Doutrinas da Bíblia, 6ª ed, São Paulo: Vida Nova 1998, p. 182.
[12] Martyn
Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo,
São Paulo: PES, 1998, p. 44,45.
[13]
Herman Bavinck, Dogmática Reformada –
Deus e a Criação, Vl 2, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 319.
Comentários
Deus não podem ser admitidas nos nossos dias, pra não incorrer na banalização dos milagres?