Pular para o conteúdo principal

Entre os cravos e a pompa

Entre os cravos e a pompa

Há um cheiro de morte no ar. As luzes já não são tão luminosas assim. O sol é arrefecido por nuvens escuras e o silêncio mórbido e agonizante só é rompido por um brado: “(...) Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46).

Esse brado não é feito a qualquer um, é dirigido ao Seu Pai. Sua vida nunca foi fácil. Em seu nascimento, foi acolhido pela desprovida e singela manjedoura. Seus pais terrenos não foram reis ou gente muito poderosa. Foi perseguido pelo ódio dos homens antes mesmo de nascer, mas foi os braços de sua mãe que o fizeram aquecer.

A infância não o presenteou com as regalias dos bem afortunados, mas, com uma vida simples. Contudo, nem os mais sábios de sua época puderam negar a sapiência de suas palavras; tiveram que ouvir um menino que fala como mestre, pois o era de fato.

Feito homem, e homem feito, não usou de seu direito, pois “antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana” (Fp 2.7). Foi levado ao deserto. Tentado pelo tentador.

Sua vida foi marcada pelo amor. Sua paga? Foram os pregos. Seu salário? A rejeição de muitos. Seu reconhecimento? Foi ser trocado por um ladrão. Enxugou as lágrimas de muitos; consolou, amou os seus até o fim e por eles se entregou. Pois, apesar de parecer frágil e desamparado, só ele tinha autoridade de entregar sua vida nas mãos dos seus algozes: “Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai” (Jo 10.18).

Seus detratores, carrascos, pensaram que tinham o poder de ceifar sua vida e estavam “matando” o autor da vida. Feriram seu corpo. Esbofetearam seu rosto. Cuspiram. Açoitaram-no com chicotes. Repartiram suas vestes. Blasfemas ouviu: “Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e creremos nele” (Mt 27.42).

Aos seus discípulos, ele determinou que fossem simples como Ele e não carregassem nem alforje: “Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento”. Deveriam buscar a frugalidade e confiar na provisão divina: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam” (Mt 6.19-20).

Hoje, ah, hoje! Os seus autodenominados discípulos já trocaram Sua glória eterna por trinta moedas de prata (Mt 27.3-11). A benção eterna foi trocada por um prato de lentilha. Ao invés de carregarem a cruz, como ele disse: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16.24), querem carregar a sacola das moedas e buscam o próprio ventre.

Jesus falava de renuncia e entrou na cidade em um jumentinho. Hoje seus “discípulos” andam em jatinhos e carregam fortunas em suas “sacolas”.

Jesus dizia para não amarmos o mundo e as coisas do mundo: “Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente” (1 Jo 15-17). Hoje, os novos discípulos de Jesus acumulam riquezas, pecados, concupiscências e buscam cada vez mais conforto na terra para viverem melhor nesse mundo perdido.

Enquanto os discípulos da época de Jesus anelavam por Sua vinda e O esperavam com alegre expectativa: “Aquele que dá testemunho destas coisas diz: Certamente, venho sem demora. Amém! Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22.20), os atuais discípulos não querem que Ele venha e acabe com sua “mordomia”.

Paulo achou incomparável morrer e estar com Cristo: “Ora, de um e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23). Hoje, os novos discípulos querem viver eternamente na terra e se fartar da comida do Egito.

Os apóstolos sofreram pelo nome de Jesus. Hoje os novos discípulos pregam vitórias financeiras e terrenas; regalias na terra. Procuram a auto-estima ao invés da imagem de Deus e a mente de Cristo. Procuram pretensos direitos junto ao Pai. A graça de Deus, para esses novos discípulos, não basta.

Entre os cravos da cruz, a coroa de espinho e a vida de sofrimento e autonegação, os novos discípulos escolheram a pompa do mundo, coroa de ouro, camas fofas e vida mansa e sem compromisso.

A despeito dos novos discípulos viverem suas vidas sem atentarem para a eternidade, a advertência continua e será sempre atual: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.36).

“Quem ama a sua vida perde-a; mas aquele que odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12.25).

“Quem quiser preservar a sua vida perdê-la-á; e quem a perder de fato a salvará” (Lc 17:33).

E você, o que tem em suas mãos, os cravos e as marcas da cruz e de sua autonegação ou a marca fatal do mundo? Estamos entre dois opostos irreconciliáveis: ou amamos o Cristo da Cruz ou seremos iludidos pela pompa passageira do mundo. Você poderá dizer: “Então, direi à minha alma: tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-te” (Lc 12.19). Mas, terá que se preparar para ouvir de Deus: “Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus” (Lc 12.20, 21).

Que Deus craveje seu coração!

Rev. Ricardo Rios Melo

Comentários

Chará,

muito bom e bonito. Me senti inspirado nessa manhã de domingo. Deus o abençôe e um grande abraço.
Unknown disse…
Muito obrigado a você xará por prestigiar o blog.

Deus o abençoe!
Ricardo Rios

Postagens mais visitadas deste blog

“Sem lenço e sem documento” – uma análise do crente moderno

“Sem lenço e sem documento” – uma análise do crente moderno Por: rev. Ricardo Rios Melo Essa frase ficou consagrada na canção de Caetano Veloso, “Alegria, Alegria”, lançada em plena ditadura no ano de 1960. A música fazia uma crítica inteligente ao sistema ditatorial e aos seus efeitos devastadores na sociedade da época. Era um período difícil em que falar contra o regime imposto era perigoso e, em muitos casos, mortal. Destarte, a minha intenção é usar apenas a frase da música “sem lenço e sem documento”. Essa expressão retrata a ideia de alguém que anda sem objetos importantes para sair de casa na época da escrita. Hoje, ainda é importante sair com o documento de identidade. Alguns acrescentariam celular e acessórios; contudo, a identificação de uma pessoa ainda é uma exigência legal. Andar sem uma identificação é sempre perigoso. Se uma autoridade pará-lo, você poderá ter sérios problemas. É como dirigir um carro sem habilitação. Você pode até saber dirigir, mas você

“Águas passadas não movem moinho”

“Águas passadas não movem moinho” Por Rev. Ricardo Rios Melo Esse ditado popular: “Águas passadas não movem moinho” é bem antigo. Retrata a ideia, como diz minha sabia avó, de que, quando alguém bate em sua porta, você não pergunta: “quem era?”; antes, “quem é”.   Parece mostrar-nos que o passado não tem importância ou, pelo menos, não deve ser um obstáculo para andarmos para frente em direção ao futuro. É claro que o passado tem importância e que não se apaga uma história. Contudo, não devemos exagerar na interpretação desse ditado; apenas usá-lo com o intuito de significar a necessidade de prosseguir em frente, a despeito de qualquer dificuldade que se tenha passado. Apesar de esse adágio servir para estimular muita gente ao longo da vida, isso parece não ser levado em conta quando alguém se converte a Cristo. É comum as pessoas falarem: “Fulano se converteu? Não acredito! Ele era a pior pessoa do mundo. Como ele pôde se converter?” O mundo pode aceitar e encobrir e

“Como se não houvesse amanhã”

“ Como se não houvesse amanhã” Rev. Ricardo Rios Melo Existe uma música, da banda de rock brasileira Legião Urbana, escrita por Renato Russo, que em seu refrão diz: “ É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não há .” Essa letra tem nuances contextuais e um grande aspecto introspectivo. Apenas me fixarei no belo refrão. Acredito que Renato Russo estava correto em afirmar que precisamos amar as pessoas como se o amanhã não existisse. A Bíblia fala que o amanhã trará o seu próprio cuidado: “Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal” (Mt 6.34). Parece-nos que a Bíblia, apesar de nos falar da esperança e da certeza da vida futura, nos chama a viver o hoje: “antes exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado” ( Hb 3.13). Ao citar o Sl 95, o autor aos Hebreus ex