A normalização do milagre – uma breve perspectiva sobre o
pansobrenaturalismo (4ª parte)
Rev. Ricardo Rios Melo
A tentativa atual de enfatizar a obra do Espírito
como uma obra autônoma é um atentado à Trindade e, na verdade, não tem sido uma
exaltação da terceira pessoa da Trindade; antes, tem sido um esforço hercúleo
de centralidade no homem. A ênfase tem sido na “liberdade” que o Espírito
concede ao homem no culto; na “liberdade” que Ele “concede” ao crente de não
necessitar das Escrituras; na liberdade e sabedoria que os crentes recebem de
não precisar de mestres que os ensine; liberdade de uma teologia que, segundo
eles, engessa a igreja. Outra ênfase é no poder que, segundo eles, o Espírito
concede ao crente de falar sem um conhecimento Escriturístico; de prática de
toda sorte de “milagres” por obreiros especiais, iluminados, uma casta superior
aos pobres crentes comuns da igreja.
O apóstolo Paulo, quando fala da liberdade do
Espírito, está no contexto comparativo entre a tentativa frustrada dos judeus de
obedecer à lei para a salvação e a liberdade desse fardo impossível, concedida
por Cristo aos que creem:
12. Tendo, pois, tal
esperança, servimo-nos de muita ousadia no falar. 13 E não somos como Moisés, que punha véu sobre
a face, para que os filhos de Israel não atentassem na terminação do que se
desvanecia. 14 Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje,
quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo
revelado que, em Cristo, é removido. 15
Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração
deles. 16 Quando, porém, algum deles se
converte ao Senhor, o véu lhe é retirado. 17
Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, aí há
liberdade. 18 E todos nós, com o rosto desvendado,
contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de
glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito (2 Co 3.
12-18).
Essa parte do texto começa bem antes, quando
Paulo faz uma comparação entre o ministério da Morte, que é a Lei, e o
ministério da Justiça, que é Cristo. A ideia paulina é que pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado e, consequentemente, a morte: “visto
que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela
lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.20).
O apóstolo Paulo entende que
o papel da Lei não é justificar o homem, mas apontar para Cristo; aponta também
para a grande realidade espiritual: o homem está morto em seus delitos e
pecados: “Ele
vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados” (Ef 2:1), “e estando nós mortos em nossos delitos, nos
deu vida juntamente com Cristo, - pela graça sois salvos” (Ef 2:5). “E a
vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão
da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos
delitos” (Cl 2:13).
O apóstolo afirma que Cristo
nos livrou da escravidão da morte e da terrível obrigação de seguir a lei para
a salvação. O papel correto da Lei é resgatado em Cristo, pois é somente o
Filho, perfeito, e em sua obra ativa, que poderia cumprir os ditames da lei: “Agora,
pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei
do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm
8. 1,2).
Em 2 Coríntios capítulo 3,
Paulo está comparando o ministério da Lei como o ministério de morte. Na
teologia paulina, a lei é boa, mas foi enfermada pelo pecado, pois o homem
caído não pode por si mesmo segui-la (vd. Rm 8. 1-12). O texto que antecede ao
versículo da liberdade do Espírito, usado isoladamente por alguns irmãos,
esclarece o pensamento paulino de maneira cristalina. O texto deve ser lido
todo como se segue:
1 Começamos, porventura, outra vez a
recomendar-nos a nós mesmos? Ou temos necessidade, como alguns, de cartas de
recomendação para vós outros ou de vós? 2
Vós sois a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por
todos os homens, 3 estando já manifestos
como carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta,
mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de
carne, isto é, nos corações. 4 E é por
intermédio de Cristo que temos tal confiança em Deus; 5 não que, por nós mesmos, sejamos capazes de
pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa
suficiência vem de Deus, 6 o qual nos habilitou
para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito;
porque a letra mata, mas o espírito vivifica. 7
E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu
de glória, a ponto de os filhos de Israel
não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que
desvanecente, 8 como não será de maior
glória o ministério do Espírito! 9
Porque, se o ministério da condenação foi glória, em muito maior
proporção será glorioso o ministério da justiça. 10 Porquanto, na verdade, o que, outrora, foi
glorificado, neste respeito, já não resplandece, diante da atual sobreexcelente
glória. 11 Porque, se o que se
desvanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente. 12 Tendo, pois, tal esperança, servimo-nos de
muita ousadia no falar. 13 E não somos
como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de Israel não
atentassem na terminação do que se desvanecia. 14 Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até
ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu
permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo, é removido. 15 Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu
está posto sobre o coração deles. 16
Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu lhe é retirado. 17 Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o
Espírito do Senhor, aí há liberdade. 18 E todos nós, com o rosto desvendado,
contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de
glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito.
Os detratores de Paulo estão
perturbando a igreja em Corinto; criando divisões e promovendo falsas
doutrinas. Paulo faz uma exposição belíssima da aplicação da Lei. A comparação
entre Cristo e Moisés é fantástica. Moisés escondia o rosto para que o povo não
percebesse que a glória do Senhor que estava estampada em seu rosto sairia com
brevidade. Mas, em Cristo, a glória é plena. Não precisamos esconder nossos
rostos, pois Cristo está em nós. Nossos rostos estão descobertos e estamos
livres dos ditames da lei. Estamos livres do pecado e da condenação certeira da
lei. O apóstolo tem ousadia no falar, pois o seu ministério traz vida e liberdade.
A Letra (lei) mata, o Espírito Santo liberta o homem do pecado e da morte.
Percebam que esses textos
não trazem nenhum argumento para os pansobrenaturalistas. Pelo contrário, é um
engano e desrespeito ao Espírito distorcer o que o Próprio Espírito inspirou.
Falando sobre o fogo estranho de Nadabe e Abiú, John MacArtuhur, aduz:
O Espírito Santo – a gloriosa terceira pessoa da Trindade – não é
menor do que o Deus Pai ou o Deus Filho. Assim, desonrá-lo é desonrar o próprio
Deus. Insultar o Espírito é tomar o nome de Deus em vão. Afirmar que é ele quem
autoriza a adoração obstinada, caprichosa e antibíblica é tratar Deus com
desprezo. Transformar o Santo Espírito em um espetáculo é adorar a Deus de uma
maneira que o desagrada. É por isso que muitas atitudes irreverentes e
doutrinas distorcidas trazidas para a igreja pelo movimento carismático hodierno
são iguais ao fogo estranho de Nadabe e Abiú, ou até mesmo pior. Elas são uma
afronta ao Espírito Santo e, portanto, ao próprio Deus – o que é motivo para
julgamento severo (cf. hebreus 10: 31).[1]
Outros textos são citados
por MarcArthur para mostrar que o Espírito requer a mesma reverência que as
demais pessoas da Trindade: Mt 12.24; At. 5.11, At 8.20 e Hb. 10.31.
A tentativa da dissociação
da reverência que Deus requer no Antigo Testamento do Novo Testamento é
puramente arbitrária e antibíblica. Portanto, o pansobrenaturalismo não só
enfatiza a ação do Espírito como algo ordinário e corriqueiro, como também
aponta para um agir do Espírito dissociado do Antigo Testamento e da própria
trindade. Com o afã de serem espirituais, acabam sendo antropocêntricos,
emocionalistas e, nos dizeres de MarcArthur, caóticos.
Jonh MarcArthur conclama os
herdeiros da reforma para uma luta corajosa contra aquilo que ele chama de “abusos difundidos sobre a obra do Espírito”:
Se declararmos fidelidade aos reformados, devemos comportar-nos
com o mesmo nível de coragem e convicção que eles demostraram enquanto
batalhavam pela fé. Deveria haver uma guerra coletiva contra os abusos
difundidos sobre o Espírito de Deus. Este livro é um convite para aderir à causa pela honra dele. Espero, também lembrá-lo
como é o verdadeiro ministério do Espírito Santo. Não é caótico, ostentoso e
extravagante (como um circo). Normalmente é oculto e discreto (da forma como o
fruto desenvolve). Não precisamos ser frequentemente lembrados que o principal
papel do Espírito santo é exaltar Cristo, especialmente para suscitar o louvor
o seu povo a Cristo o Espírito faz isso de maneira exclusivamente pessoal, em
primeiro lugar nos repreendendo e convencendo – mostrando-nos o nosso próprio pecado,
abrindo nossos olhos para o que é a verdadeira justiça, e nos fazendo sentir
profundamente a nossa reponsabilidade para com Deus, o justo juiz de todos (João
16: 8-11).[2]
É interessante notar que a tentativa de colocar o holofote no Espírito
atribuindo a Ele todo tipo de comportamento esdrúxulo, como andar como leão,
vomitar, risos incontroláveis, curas de dor de cabeça, curas de dor de
cotovelo, profecias que não se cumprem, visões estranhas etc., afastam ainda
mais o homem de Sua obra.
A obra do Espírito desde o
AT está intimamente ligada ao Pai e ao Filho. Contudo, a obra do Espírito no NT
é claramente glorificar o Filho; é apontar para o Filho e aplicar a obra Redentiva
nos corações dos homens. O Pai elege, o
Filho consuma a obra na Cruz e o Espírito aplica.
continua...
[1]
John MarcArthur, Fogo estranho: um olhar
questionador sobre a operação do Espírito Santo no mundo hoje, 1ª ed, Rio
de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2015, p. 9.
[2]
John MarcArthur, Fogo estranho: um olhar
questionador sobre a operação do Espírito Santo no mundo hoje, 1ª ed, Rio
de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2015, p. 15,16.
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