A
insolvência da igreja tradicional: realidade ou circunstância?
Rev.
Ricardo Rios Melo
Há um crescimento exponencial de comunidades
evangélicas no Brasil. Aliás, o advento das comunidades é uma febre em todas as
áreas da sociedade: comunidades sociais de cunho físico ou virtual. A internet
facilitou e promoveu a possibilidade de criação de comunidades virtuais por
afinidade de sentimentos, características pessoais, patologias, estética e
milhares de outras comunidades que pretendem, em última instância, dizer que
você pertence a um grupo, você é comum. Ser comum normaliza o sujeito.
A palavra comunidade tem o sentido de
agremiação, sociedade, comuna, grupo que se reúne geograficamente e, mais
recentemente, grupo de fiéis que se reúnem em determinado espaço. É curioso
notar que o sentido contemporâneo de comunidade não implica espaço material,
físico. Você pode pertencer a uma comunidade virtual.
Comunidade, dentro de um dos sentidos
filosóficos, é uma comunhão de espaço e ideias que, necessariamente, não se
pode averiguar empiricamente. A sociologia tornou a expressão diretamente
ligada a pessoas que se vinculam na sociedade por interesses e, principalmente,
comportamentos comuns. (Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, 4ª ed.,
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 162).
Bauman entende que a comunidade é lugar de
segurança do sujeito. É o lugar de pertencimento, aconchego, refúgio, abrigo:
(...)
é um lugar ‘cálido’, um lugar confortável e aconchegante. É o teto sob o qual
nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as
mãos num dia gelado, lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita;
temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção como quem falamos e a
quem nos fala, estar em prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade podemos
relaxar – estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros (com
certeza, dificilmente um ‘canto’ aqui é ‘escuro’). (BAUMAN. Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo
atual, Rio de Janeiro; Jorge Zahar, Ed. 2003, p. 7).
.
Esse “oásis” em pleno deserto pós-moderno tem
levado a Igreja institucional, tradicional, confessional ou clássica, a
repensar seus valores e propósitos. Um autor que enfatiza muito a necessidade
de ressignificação, o que ele chama de propósitos, é Rick Warren em seu livro
“Uma Igreja com Propósitos”.
Parece que a igreja, a qual será chamada
nesse arrazoado de tradicional, passa por um processo de ressignificação. Ela
tem sido atacada de todos os lados. A igreja emergente, comunidade, missão
integral e outras designações trazem em seu discurso uma crítica aos moldes
protestantes históricos. A própria existência desse “novo” grupo já é uma
crítica contundente, pois demostra inquietação e, no entendimento de muitos
deles, inabilidade da tradição reformada de responder às demandas modernas.
As palavras: relevância, significado, integral,
mudança social têm sido palavras replicadas e decantadas nos discursos. Há um
antinomismo claro nos discursos. Há o esvaziamento do púlpito, que em boa parte
desses grupos não existe mais.
O pastor não é um pregador, mas um
palestrante. Ele precisa vestir-se despojadamente e falar com liberdade e em uma
linguagem moderna e sobre atualidades para que sua mensagem seja relevante e
sua própria presença seja admitida pela comunidade. Não há lugar para
estruturas físicas com formato de igreja. Em 1824, as igrejas protestantes
receberam a permissão de celebrarem seus cultos com uma condição: não criarem
templos com formatos de igreja.
Hoje, a proibição é epistêmica e pragmática.
A ideia é que, para agradar e ser “relevante”, a igreja não pode ter formato
interno e externo de igreja. Os templos poderão ser substituídos por locais
aconchegantes e de preferência com cara de teatro. E o nome precisa ser
modificado para não afastar as pessoas.
Quem estiver atento à ideia de signo,
significado, significante, entenderá que estruturas externas pretendem
demostrar sinais da mensagem interna que se quer passar. Portanto, um nome ou
uma construção não é isenta de significado, existe uma estética filosófica. Uma
mensagem direta e indireta. Não era sem motivos que as construções das igrejas
medievais tinham aqueles formatos. Era imperativo para a igreja dominante da
época passar uma mensagem.
Um exemplo contemporâneo é a construção de
templos gigantescos das igrejas neopentecostais. Não se pode falar de
prosperidade se a própria igreja é pequena, acanhada, não próspera. Há
intencionalidade, método, estudo mercadológico, sociológico.
As igrejas emergentes, comunidades integrais
ou não, pretendem realizar uma reforma ou reformissão[1]. Contudo, essa
pseudoreforma não tem nenhuma conexão com a reforma do século XVI. Para Carson,
existe uma diferença gritante entre as igrejas emergentes e os reformadores:
O
que impulsionou a Reforma foi a convicção, que tomou conta de todos os seus
líderes, de que a Igreja Católica Romana havia se distanciado das Escrituras e
introduzido uma teologia e uma prática contrária à fé cristã genuína. Em outras
palavras, eles queriam que as coisas mudassem, mas não porque perceberam que
havia ocorrido mudanças na cultura, de modo que a igreja teria que se adaptar a
esse novo perfil cultural; antes, eles queriam mudanças por terem percebido o
surgimento na igreja de teologia e prática novas que contrariavam as Escrituras
e que, portanto, havia uma necessidade de que tudo isso fosse reformado pela
palavra de Deus. (...) Trocando em miúdos, no centro da reforma proposta pelo
movimento emergente encontra-se a percepção de uma grande mudança na cultura.
(CARSON. D. A. Igreja Emergente: o
movimento e suas implicações, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 49,50).
A tentativa de decretar a falência da suposta
insolvência da igreja tradicional nada mais é que um oportunismo mercadológico.
Não há argumentos bíblicos e históricos para que esse processo se torne
realidade. Dentro da criação e consumação divina, na perspectiva
histórico-redentiva, não há fundamentos substanciais para se propor mudança
dogmática.
Os apóstolos já passaram pela tentação de
mudar sua mensagem para agradar o público. O apóstolo Paulo, quando escreveu
aos Coríntios, no capítulo 1. 21-25, não sucumbiu aos apelos extremados dos
seus ouvintes e nem aderiu a qualquer perspectiva hegeliana de síntese:
“Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo
não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem
pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como
os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado,
escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto
judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do
que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”.
O nosso
Senhor Jesus passou pelo desafio de mudar sua mensagem em João 6, pois Ele
sabia que muitos que o seguiam não estavam dispostos a seguir o Evangelho da
cruz:
“Muitos dos seus discípulos, tendo ouvido
tais palavras, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? Mas Jesus, sabendo por si mesmo que eles murmuravam a
respeito de suas palavras, interpelou-os: Isto vos escandaliza? Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para
o lugar onde primeiro estava? O espírito é o que vivifica; a carne para nada
aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida. Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia,
desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair. E prosseguiu: Por causa disto, é que vos
tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. À vista disso, muitos dos seus discípulos o
abandonaram e já não andavam com ele. Então, perguntou Jesus aos doze: Porventura, quereis
também vós outros retirar-vos?Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem
iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; ( JO 6. 60-68)”.
Bom, alguns poderão dizer, por
que você não avalia os pontos desses grupos pormenorizadamente dentro das
Escrituras? A resposta é simples: como Carson disse, em outras palavras, as
mudanças que ocorreram nesses grupos não vieram das Escrituras, mas da
exigência sociocultural. “Como dizia Marx
sobre a cultura orientada pelo mercado: ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’.
Deus também se torna uma mercadoria – um produto ou terapia que podemos comprar
e usar para nosso bem-estar pessoal” (HORTON, Michael. Cristianismo sem Cristo, São Paulo; Cultura Cristã, 2010, p.
61,62).
O problema que emerge, desculpa o
trocadilho, é que as comunidades e afins surgem de uma tentativa de liberdade
das amarras institucionais. Entretanto, inevitavelmente, se tornarão
instituições e, quando isso acontecer, estarão decretando sua falência:
Como
‘comunidade’ significa atendimento compartilhado do tipo ‘natural’ e ‘tácito’,
ela não pode sobreviver ao momento em que o entendimento se torna autoconsciente,
estridente e vociferante; quando, para usar mais uma vez a terminologia de
Heidegger, o entendimento passa do estado de zuhanden para o de vorhanden e
se torna objeto de contemplação e exame. A comunidade só pode estar dormente –
ou morta. Quando começa a versar sobre o seu valor singular, a derrarmar-se
lírica sobre sua beleza original e a afixar nos muros próximos loquazes
manifestos conclamando seus membros a apreciarem suas virtudes e os outros a
admirá-los ou calar-se – podemos estar certos de que a comunidade não existe
mais (ou ainda, se for o caso). A comunidade ‘falada’ (mais exatamente: a
comunidade que fala de si mesma) é uma contradição em termos” (BAUMAN. Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo
atual, Rio de Janeiro; Jorge Zahar, Ed. 2003, p. 17).
Queridos irmãos, é um fato que a
pós-modernidade trouxe desafios de comunicação para a igreja tradicional,
contudo, a resposta não virá de fora das Escrituras. Achar que a nossa
sociedade é pior do que a sociedade em que viveram nossos pais apostólicos e
reformadores é, no mínimo, pretensão.
Mudança de símbolo implica mudança da
realidade. Alguns querem trocar as escamas sem trocar de corpo. É uma tentativa
hercúlea de síntese pós-moderna onde uma libélula bateria suas asas, mas com a
certeza que pode voltar para o casulo.
A igreja tradicional precisa se preparar para
receber os filhos pródigos, pois, mudando o que deve ser mudado, eles sabem que
é na casa do Pai (igreja) que são bem tratados!
“para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa
de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e baluarte da verdade”. 1Tm 3:15
Deus nos abençoe!
Rev. Ricardo Rios Melo
[1] Reformissão era uma
expressão muito usada e propagada por um dos ícones das igrejas emergentes,
Mark Driscoll. Recentemente, um escândalo no ministério desse pastor
enfraqueceu levemente essa expressão e atuação. Contudo, no Brasil, esses
termos tomaram novos contornos e continuam fortalecidos em congressos e
encontros espalhados por todas as regiões.
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